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Estreia de Carlos Correia Santos no Pará Diversidade: leia o conto “Belle Dalila”

8 março 2011 Nenhum comentário

BELLE DALILA*

Carlos Correia Santos

Todo sempre, de manhã até a noite, os olhos se espantam atrás de alguma coisa que mereça ficar na lembrança. É vício do enxergar. Por não saber disso, por não saber que podia ser apenas vício do enxergar, inquietou-se quando sua atenção caiu sobre ela. Pudera também. Uma imagem daquela. Comum é que não era. Comum nadinha, nadinha. Ele estava numa parada de ônibus. Mas, nunca parado, seu olhar alcançava a cena na praça em frente. Como quem transforma um banco escroto em trono de pedrarias, aquela travesti. Seu olhar caiu e ali ficou: sobre aquela travesti. Negra. Magra que nem o pior do não comer. Falta de banho notável. Com tudo isso, postura imperiosa. Corpo cintado em elegância de bailarina. Ou seria mais certo dizer de soberana? Ombros quase voando. Queixo erguido. Vestia rosa e tinha uma flor amarela no ralo cabelo acajú. O aflitivo: pernas cruzadas e, na direita, uma imensa estrutura de pinos, dessas que se usa em casos de fratura múltipla. Ia do joelho ao tornozelo. O incompreensível: segurava uma placa em que se lia: “Obrigada pelo presente que estás me dando. Assinado: Belle Dalila”. Presente? Qual? Como a curiosidade é sogra do continuar olhando, continuou olhando, à distância, a travesti. Belle Dalila? Nome? De que guerras? Vendo-se vista, a travesti alargou ainda mais os ombros e empunhou a placa toda em sua direção. Mostrou para ele o texto. Só para ele. No rosto que lutava entre o masculino e o feminino, coisa alguma. Ou era aquilo, ali, naquela seca boca, um riso com alguma coisa de nada? O português perfeito se borboletava até seus olhos, ainda mantidos na parada de ônibus: “Obrigada pelo presente que estás me dando”. Os olhos da travesti, deitados no silêncio, eram mariposas queimando na luz. Ele, o observador, ficou inquieto. Ninguém mais estava prestando atenção naquele quadro surrealista? Não, ninguém mais. Sim, mais ninguém… Como era possível? Passível. Era o que era. Quimera? Decidiu quebrar o lugar comum. Saiu de seu lugar, comum, na espera pelo coletivo e, passadas como quem busca futuros, cruzou a rua, avançou no ir, invadiu a praça, chegou aos pés da rainha mendiga que, um dia, tinha nascido já príncipe de misérias. Deteve-se diante da travesti. E perguntou:

– Que presente?

Belle Dalila riu? Quem saberá?… Talvez tenha apenas ruído ao responder:

– O presente de teres notado que eu existo.

*Conto inspirado em fato real

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SOBRE CARLOS CORREIA SANTOS

Poeta, contista, cronista, romancista e dramaturgo, Carlos Correia Santos é autor de “Velas na Tapera” (romance ganhador do Prêmio Dalcídio Jurandir), “Nu Nery” (ganhador do Prêmio IAP de Literatura), “Batista” (ganhador do Prêmio IAP de Literatura), “Poeticário” (poemas) e “O Baile dos Versos” (saudado pela Academia Brasileira de Letras, em 2009). Venceu o Prêmio Funarte de Dramaturgia por três anos consecutivos (2003, 2004 e 2005), o Prêmio Funarte Petrobras de Fomento ao Teatro (2005), o Prêmio Funarte Petrobras de Circulação Nacional (2006) e o Edital Seleção Brasil em Cena do Centro Cultural Banco do Brasil. Incluídos no Catálogo da Dramaturgia Brasileira, de Maria Helena Kühner (iniciativa detentora do Prêmio Shell), seus textos já foram apresentados em Belém, São Luís, Natal, Recife, Camaçari, Piracicaba, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Teve espetáculos selecionados no Edital Caixa Cultural nos anos de 2008 e 2009. Em 2009, venceu a categoria dramaturgia, com o texto “Não Conte com o Numero Um No Reino de Numesmópolis”, do III Concurso Literatura para Todos, promovido pelo Ministério da Educação. Suas peças já foram traduzidas para o francês e espanhol. Importantes artistas brasileiros, como Stella Miranda (que interpretou a síndica do humorístico “Toma La, Dá Cá”, de Miguel Falabella, exibido na TV Globo), já assinaram direção de suas obras.