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Espetáculo “Ópera Profano” é assumidamente militante, diz autor

13 outubro 2014 7 comentários

O que aconteceria se a imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré, a mesma usada em todas as romarias do Círio, fosse furtada por uma travesti e acabasse dentro do Cine Ópera, dedicado à exibição de filmes adultos e frequentado por LGBTs e garotos de programa em Belém? Esse é o provocativo mote do espetáculo “Ópera Profano”, que estreia nessa terça (14), propositadamente em plena quadra nazarena, e segue até sábado (18), sempre às 20h, no Porão Cultural da Unipop.

Na premiada trama do dramaturgo Carlos Correia Santos, a travesti Tota provoca um tumulto na capela de onde sai a procissão da Trasladação. Em meio à confusão, ela furta a imagem da Santa e a leva para o Cine Ópera, para realizar o sonho de sua colega travesti Baby. Dentro do cinema, lutando contra as complicações decorrentes do HIV, Baby sonha em se aproximar de Nossa Senhora e rezar por um bom descanso. Lá também se encontram um ríspido garoto de programa chamado Lucas, o jovem Ângelo, que frequenta o local sem que sua conservadora família suspeite, e a decadente travesti Mira, que na juventude teve um filho, do qual não possui mais qualquer notícia. Pontuando o drama, três misteriosas figuras femininas transitam por entre os personagens sem serem vistas e tentam entender por qual razão todas aquelas vidas são completamente ignoradas pela sociedade.

O espetáculo é resultado de um processo que durou oito meses e foi compartilhado com o público. O estudo do universo LGBT motivou a produção a criar eventos que serviram para instrumentalizar os atores e também funcionaram como palestras públicas. No projeto Terças Profanas, artistas e estudiosos abordaram temas como violência homofóbica, direitos homoafetivos e a convivência com o vírus HIV.

Carlos Correia Santos, em entrevista ao Pará Diversidade, falou sobre as mudanças na atual montagem – a peça já havia sido encenada em 2010 -, sobre os grandes eixos que aborda na obra, que são a marginalização e a maternidade, e sobre o caráter militante de sua arte. “A peça é assumidamente ativista. Isso porque eu e Hudson [diretor] não entendemos teatro como arte de vitrine: que se faz, expõe-se e pronto. É Arte com maiúscula e destinada a provocar reações reais. É Arte que traz o público para dentro. Quero provocar o debate real a partir dela, que ela seja um mote de visibilidade social”, enfatiza o autor. Nessa perspectiva, todo o elenco do espetáculo aderiu à campanha “Nós Damos Nossa Cara a Tapa”, mudando suas fotos de perfil no Facebook e assumindo elementos trans na imagem.

Confira abaixo a entrevista na íntegra.

OBS: Em parceria com a produção do espetáculo, o Pará Diversidade vai sortear um par de ingressos (sorteado + acompanhante) para a peça, para o dia 17/10 (sexta). Para concorrer, basta deixar um comentário ao fim da matéria, com algum dado seu para podermos entrar em contato. Esse dado vai ser apagado antes de liberamos o comentário. Todos os comentários são moderados, então deve demorar algum tempo até serem publicados. O sorteio acontece dia 16, às 22h. Boa sorte!

[Atualização: A vencedora do sorteio foi Cristina Autran. Parabéns!]

Pará Diversidade – No que essa temporada difere das já encenadas anteriormente?

Carlos Correia Santos – Essa montagem é bem diferente da primeira. Bem mais densa, agora totalmente fiel ao meu texto. Estou muito, muito feliz com a montagem da Companhia Teatral Nós Outros, dirigida por Hudson Andrade. A montagem anterior foi importante, porque trouxe atenção para o meu texto, para a história que criei. Naquela montagem, todos os personagens em cena eram os meus personagens, mas havia cenas que não estão no texto original e outras cenas que estão e penso que são importantes, mas foram cortadas. De modo geral, a versão anterior retirou as referências bíblicas que faço. Eu cometo o abuso, na dramaturgia de Ópera Profano, de divinizar os seres do gueto. O enredo mostra a entrada de Nossa Senhora no Cine Ópera para entender quem são as criaturas que vivem lá. Com essa entrada da Santa, os personagens se envolvem em sua aura, mesmo sem perceber, e vão se sacralizando. Essa é a grande provocação que faço na dramaturgia. Em dada altura, uma travesti pergunta: quem disse que não há santidade em nós? Há santidade em nós…em algum canto perdido, há santidade em nós. Essa montagem atual mantém toda essa aura e, portanto, torna a peça mais inquietante, mais perturbadora, num momento em que tanta homofobia tem vindo à tona.

PAD – Mas por que antes o teu texto não foi abordado dessa forma integral? Receio?

CCS – Não sei. Foi uma escolha da outra direção. A outra versão foi mais show, mais essencialmente musical. Foi linda. Mas tinha outros tons. Para mim, enquanto dramaturgo, é bom ver isso acontecer. É lindo, ainda jovem, ver leituras diferentes pra minha obra.

PAD – Essa obra já foi publicada?

CCS – Foi. Ela ganhou o Prêmio Cidade de Manaus, em 2005, e fui publicado pelo Conselho de Cultura do Amazonas. Veja que coisa: uma peça que fala teoricamente de uma situação tão de Belém, foi premiada em Manaus. Na verdade, ganhei poucos prêmios em Belém. Quase todos os meus prêmios são de outras cidades.

PAD – Essa versão não é “um espetáculo de teatro musical”, como foi definida anteriormente?

CCS – A atual montagem é um espetáculo cênico-musical. Eu estarei em cena tocando e cantando as músicas da peça ao vivo, com dois parceiros, Angelo Silva e Pedro Soares. Essa é uma outra novidade: agora todas as canções são as canções que eu escrevi para o texto. Na outra montagem, havia várias canções que não estavam no texto original. A música é um elemento do meu texto. Ela pontua, costura e arremata as cenas.

PAD – O elenco também mudou?

CCS – Sim, mudou quase todo o elenco. Só temos uma atriz que esteve na outra montagem, Marlene Silva, mas nessa atual ela faz outra personagem, a Misteriosa. Tanto os atores da outra montagem quanto os atuais são fantásticos, maravilhosos. E nesse quesito, temos uma coisa bem bonita: quatro atores estão estreando no teatro profissional nesse espetáculo e fazendo papéis difíceis, em que precisarão estar literalmente nus em cena. São muito corajosos. Eu tiro o chapéu. Um dos estreantes, inclusive, faz a mais difícil cena da peça. Uma cena que quando mostramos nos ensaios abertos para convidados causa muito incômodo, mesmo para pessoas do teatro, mas uma cena importantíssima.

PAD – A cena do garoto de programa violentado pelo padrasto?

CCS – Exatamente.

PAD – Deve ser forte.

CCS – Muito. Eu que criei não consigo ver.

PAD – Percebi que a estratégia de divulgação de vocês mudou. Antes tinha um site, hoje o foco está nas redes sociais e numa programação prévia, com as Terças Profanas. O que essa mudança trouxe de positivo?

CCS – Isso foi importante em duas frentes. A primeira foi trazer a peça para mais junto do público, porque a rede social é o local onde as pessoas estão hoje em dia. E a outra frente foi a de assumirmos clara e efetivamente uma postura militante. Essa peça não pretende ser mero entretenimento. Essa é uma questão que persigo desde que escrevi o texto. Quero provocar o debate real a partir dela. Então, conversando com o Hudson, diretor, pensamos que o processo de palestras que faríamos para os atores (para que eles entendessem o universo LGBT no qual precisariam mergulhar) podia ser aberto ao público. Assim já íamos fidelizando esse público e concretamente transformando a peça em mote de visibilidade social. E deu muito certo! Aí agora mais próximo veio a minha ideia de fazer a campanha “Nós Damos Nossa Cara a Tapa”: todo o elenco mudou suas fotos de perfil e assumiu os elementos trans de alguma forma na imagem. O louco foi que as pessoas do público começaram a pedir fotos iguais. Isso é lindo!

PAD – Então pode-se considerar que a peça é ativista?

CCS – Sim, muito, assumidamente. Isso porque eu e Hudson não entendemos teatro como arte de vitrine: que se faz, expõe-se e pronto. É Arte com maiúscula e destinada a provocar reações reais. É Arte que traz o público para dentro. Essa, aliás, é outra diferença. A encenação desta vez fará com que a plateia esteja dentro do palco, dentro da cena. Na Unipop não há o distanciamento que os teatros tradicionais têm. O público vai sentir a respiração dos atores junto. Por isso mesmo, faremos mais uma provocação: no início da peça, vendas pretas serão distribuídas. Quem quiser fechar os olhos para não ver alguma coisa…pode fechar.

PAD – Em 2010, quando o espetáculo foi primeiramente encenado, disseste que tiveram muita dificuldade com apoio, porque ninguém queria ter seu nome ou marca associado à temática. Isso mudou, de lá pra cá?

CCS – Absolutamente nada. Temos apoios institucionais muito importantes como a própria Unipop, que nos cedeu a pauta lindamente e onde ensaiamos; como a Casa da Cultura Digital Pará, onde realizamos as Terças Profanas; o Centro Atores em Cena, onde ensaiamos também, mas patrocínio, nenhum. Hoje, eu e Hudson independemos disso, graças a Deus, e por isso conseguimos fazer o que queremos. Temos um sistema de autogestão. Nossos projetos são financiados pelo nosso público que assiste nossos espetáculos. É com o que arrecadamos das bilheterias que formamos nosso fundo de reinvestimento. Mas tivemos algo especial, sim. Doações que pessoas fizeram para que montássemos a peça.

PAD – E em termos de receptividade do público, houve mudança? Recebem muitas críticas, de que seria uma ofensa à Nossa Senhora?

CCS – Olha, esse enredo que criei, de modo geral, desperta muita atenção do público. Assim que começamos a divulgação nas redes sociais, foi um rastilho de pólvora. Muitos compartilhamentos, muita gente curiosa, alguns pensando que é comédia. É muito positivo de modo geral. Mas já recebemos muitas manifestações homofóbicas, sim. Um dos atores, inclusive, já recebeu manifestações bem agressivas, xingamentos. Há nesse elenco atores heteros e homoafetivos, mas na medida em que todos damos a cara a tapa, todos passamos a ser taxados de bichas e pervertidos. Então, os ataques vêm, e especialmente por conta das artes que criei. Na imagem principal de divulgação, temos uma travesti em roupas sensuais dentro da Berlinda e Nossa Senhora liberta indo em busca das pessoas fora da redoma dourada em que a colocam. Essa arte despertou algumas reações agressivas. Ou seja, conceitos prévios, também conhecidos como preconceitos.

PAD – E críticas da própria Igreja Católica, ou da Diretoria do Círio, houve?

CCS – Nenhuma. Nem na outra nem nessa, nunca recebemos nenhuma manifestação. Aí vale uma ressalva minha: tenho sido constantemente apoiado pela TV Nazaré, que conhece minha história e sempre me abre espaços nobres. Vejo nisso um sinal muito bonito de respeito. A Fundação Nazaré, na verdade, de modo geral é uma das minhas maiores apoiadoras midiáticas. Mas para esse caso específico, de Ópera Profano, resolvi não mandar essa pauta pra lá, pois sei que ficaria complicado pra eles. Foi uma decisão minha de não causar confronto. Não é esse o objetivo. Mas a Fundação sabe que sou o autor de Ópera Profano e mesmo assim é sempre muito cordial e respeitosa com as minhas criações.

PAD – A peça aborda o direito dos sujeitos marginalizados à fé e também questões como maternidade e o feminino. Fale um pouco sobre como essas temáticas se desenvolvem.

CCS – Esses são exatamente os grandes eixos que abordo. Ópera Profano é uma dramaturgia que indaga tudo isso. Primeiro: a fé é também um direito. E como, tal independe de orientação sexual. Todo e qualquer ser humano tem direito a sua fé e precisa ser respeitado e acolhido nisso. Discutimos também o arquétipo da maternidade. A partir de Maria, símbolo-mor disso, trazemos esse arquétipo para o universo da travesti, que, por identidade de gênero, se entende mulher. Portanto, também com o direito aos clamores maternos. E a peça fala sobre os impactos da relação sobre a homoafetividade: de que forma nós, gays, estamos ligados ao condão materno. De que forma somos esmagados quando esse condão nos abandona. De que forma esse condão pode ajudar a minorar as dores causadas pelo preconceito.

PAD – Mas, como seres marginalizados, LGBTs e profissionais do sexo não são vistos como dignos de direitos, muito menos nesse âmbito, como se não fossem merecedores do divino. Como se fosse uma oposição, na verdade: profanos demais pra serem sagrados…

CCS – Pois é, aí vem uma coisa interessante, que é minha escolha pela palavra profano. Profano é apenas aquilo que está fora do templo. E quem está fora do templo está na vida real. E na vida real somos todos divinos, porque temos a nossa sagrada luta em prol da evolução. Um povo evoluído é aquele que se respeita. Porque todos nós, indiscriminadamente, estamos fora dos templos.

PAD – E como “a face feminina de Deus”, como você define Nossa Senhora, se encaixa nisso?

CCS – Ah, aí vem o que muito emociona. É preciso frisar nisso tudo que eu, Carlos Correia Santos, sou extremamente devoto de Nossa Senhora. Eu amo Maria, amo imensamente. Eu sou daqueles que chora quando a Berlinda passa e tudo mais. Toda essa peça é uma homenagem minha a Ela, Maria, que entendo, como muitos, sendo a face feminina de Deus. Maria é o quarto elemento que amplia a Santíssima Trintade. É Deus-Mulher. É Gaya. É a Mãe Terra. É a Deusa, das religiões pagãs, que foi transmutada. É nosso útero afetivo-místico.

PAD – A que todos acolhe, independente de qualquer condição?

CCS – Eu creio que sim. O grande problema do pecado é que ele foi criado pelo homem. Quem veste Maria com pedrarias e ouro é o homem, não Ela própria.

SERVIÇO:

Ópera Profano, montagem da Companhia Teatral Nós Outros. Dias 14, 15, 16, 17 e 18 de outubro, às 20h, no Porão Cultural da Unipop (Senador Lemos, 557, entre Dom Pedro I e Dom Romualdo de Seixas). Ingressos: R$ 20,00 com meia para estudantes. Produção não recomendada para menores de 18 anos (contém cenas de nudez e violência emocional).

Elenco:

Nilton Cézar (Baby)

Luiz Girard (Mira)

Jadylson de Araújo (Tota)

Danilo Monteiro (Ângelo)

Heythor Costa (Lucas)

Marlene Silva (A Misteriosa)

Lady Guimarães (Conselheira 01)

Karina Lima (Conselheira 02)

Direção de luz:

Sônia Lopes

Direção geral, figurinos, coreografias e cenografia:

Hudson Andrade