Belém ganha cursinho para Enem voltado a pessoas trans e outras vulnerabilidades

Cursinho (R)Existência vai preparar pessoas trans e outras vulnerabilidades para o Enem, gratuitamente (Imagem: Divulgação)
Por Ádria Azevedo – Redação Pará Diversidade
Uma das grandes dificuldades vivenciadas por pessoas trans é a de acesso e permanência nos ambientes educacionais formais. Muitas abandonam os estudos, por conta dos inúmeros atos discriminatórios que sofrem nas escolas e universidades, do desrespeito ao seu nome social e até da impossibilidade de usar o banheiro correspondente ao gênero com o qual se identificam.
Sem formação e excluídas do mercado de trabalho, as pessoas trans se veem com poucas opções para garantir a sobrevivência. De acordo com dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, por exemplo, 90% das mulheres trans e travestis do país acabam recorrendo à prostituição.
Para tentar mudar essa realidade, criar espaços educacionais acolhedores à população trans e dar oportunidade de acesso ao ensino superior, têm sido criados cursinhos preparatórios ao Enem voltados para o segmento, em várias cidades do país. São exemplos o Cursinho Popular Transformação, de São Paulo, o TransEnem BH, de Belo Horizonte, o TransEnem de Porto Alegre e o Prepara Nem do Rio de Janeiro.
Foi justamente a partir da proposta do Prepara Nem que surgiu a sementinha para a criação de um cursinho semelhante em Belém. A professora de Filosofia Lívia Noronha viu uma publicação no Facebook sobre o preparatório carioca e se interessou. “Fiquei encantada com a ideia e compartilhei a postagem com uma provocação: ‘Bem que poderíamos fazer um aqui em Belém, né?’. Com o retorno positivo de alguns, acabei levando a sério e fiz uma chamada na mesma rede social, pra ver se as pessoas topavam. Em dois dias, já eram 80 colaboradores!”, conta Lívia, que se tornou a coordenadora do cursinho, nomeado (R)Existência.
Atualmente, já são mais de cem voluntários, entre professores de todas as áreas exigidas pelo Enem e também outros profissionais, como de Psicologia, para ajudar nas orientações e mediação de conflitos, e de Comunicação Social, para cuidar da identidade visual e divulgação. A articulação é somente de pessoas físicas. “Apenas gente com vontade de fazer universidade com cara de povo”, segundo Lívia. Por isso mesmo, o preparatório, que será gratuito, aceita todo tipo de contribuição, com trabalho e recursos.
O público-alvo, de pessoas trans (travestis, transexuais e outras transgeneridades), se estendeu para outros segmentos: negras e negros, moradores de periferia, afro-religiosos e pessoas em vulnerabilidade socioeconômica, priorizando sempre as pessoas em situação de maior vulnerabilidade.
Aula inaugural – A primeira aula acontece nesse sábado (14), no local onde funcionará o cursinho, o Instituto Nangetu, um terreiro e espaço de preservação das culturas tradicionais negras que abriu as portas à iniciativa. A aula inaugural contemplará não apenas os alunos, mas também os próprios professores voluntários, numa espécie de curso de formação. Isso porque nem todos estão completamente familiarizados com as especificidades do público-alvo e precisam conhecer mais sobre questões como raça, classe, gênero e sexualidade.
A professora de História Alanna Souto será colaboradora no curso de formação e contribuirá para o debate étnico-racial, aliado a discussões de gênero e classe. Segundo ela, o objetivo é possibilitar a compreensão do processo de formação sociocultural das populações amazônidas, tanto para os professores voluntários quanto para os alunos. “Isso fortalece não só o saber técnico-científico, mas também as identidades e autoestima para viver numa sociedade desigual como a nossa”, explica.
Bruno Mouzinho é um dos professores voluntários e dará aula de Sociologia. Ele conta que já havia pensado em iniciativa semelhante dias antes do chamado de Lívia e se sentiu contemplado quando soube da iniciativa. “Quando vi, rapidamente entrei em contato pra contribuir. Acho que é uma maneira de fazer a universidade ter uma representatividade real da população brasileira”, analisa.
Proposta pedagógica – As aulas do (R)Existência serão aos sábados e domingos, das 8h às 18h, trabalhando os conteúdos do edital do Enem de forma interdisciplinar. Por acontecer apenas aos fins de semana, o preparatório terá uma proposta pedagógica diferenciada, com aulas direcionadas a temas transversais, que reunirão professores de acordo com a divisão por área proposta pelo Enem, como a de Ciências Humanas e suas tecnologias, por exemplo.
A ideia é também problematizar os conteúdos em relação à realidade vivenciada pelos alunos e, além das aulas em si, promover outras atividades para trabalhar seu empoderamento e consciência crítica. “Queremos aprender juntos, além de aprovar pessoas no vestibular. Pra nós, não basta que elas e eles entrem na universidade: queremos que ocupem, que façam, que mudem a academia”, enfatiza Lívia Noronha.
Sonho – O homem trans Luís Ribeiro é um dos alunos já inscritos. Sua meta é cursar Gastronomia, mas ainda não conseguiu aprovação no Enem. Além de não ter condições financeiras para pagar um cursinho particular, acredita que não seria respeitado se viesse a frequentar um. “No (R)Existência, sei que serei bem recebido, tratado como mereço, pra ter a cabeça livre pra estudar e me empenhar, o que eu não conseguiria em outro lugar”, diz. Para ele, a criação do cursinho foi um “empurrão divino”. “Sinto que esse ano vou conquistar meu sonho. O (R)Existência veio exatamente pra nos dar o que o título indica: a resistência em existir e sermos mais!”.
Inscrições – As pessoas que fizerem parte do público-alvo e quiserem se inscrever devem ir ao Instituto Nangetu nessa quinta (12) das 10h às 18h ou na sexta (13), das 9h às 13h. Basta levar original e cópia da carteira de identidade e preencher lá mesmo uma ficha de cadastro. Se a procura for maior do que o número de 60 vagas disponibilizadas, haverá uma seleção a partir da análise do cadastro.
A aula inaugural será no sábado (14), a partir das 9h, também no Instituto, que fica na Travessa Pirajá, n. 1194, entre Av. Rômulo Maiorana, antiga 25 de Setembro, e Av. Duque de Caxias. Qualquer dúvida, é só falar com a Lívia Noronha no 98287-1917 ou com a Evileny Gonçalves no 98320-5037.